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A mostrar mensagens de dezembro, 2020

Grafias dos mares

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Há mares cor de sol onde os rios se acolhem amorosamente. Onde as vagas se erguem e a preia-mar escorre pelas areias. Os céus azuis vastos e claros e de seguida nocturnos cuidam desses mares. No azul-escuro da noite o farol se acende e logo o seu braçado luminoso cobre o espaço como rosa-dos-ventos. Para onde os barcos olham e navegam na certeza do rumo. Há mares onde a ondulação é vagarosa e as águas se recolhem cada vez mais longe baixadas no horizonte. De onde se desprendem das suas mutações colares de algas. Onde as mais incríveis lendas são verosímeis. Há mares onde os rostos se espelham e se diluem em suas águas por entre rochas criando a ilusão de que estarão a florir lendários sorrisos de sereias no meio de múltiplas estrelas-do-mar. Onde aves marinhas debicam gotas de sol lá no alto e com elas enfeitam as asas. E: As asas leves cor de ouro velho traçam grafias de sonho pelo ar!   Eugénia  

Escadas do Codeçal

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A escada   Seduz-me o halo de envelhecimento que rodeia a escada. Em sua traça, a cor dos tempos, as vertigens da humidade; a erosão dos passos cronometrados e das lufa-lufas intemporais; o eco dos sonhos que adivinho ao longe; o limiar e os limites das vidas.   Composta por múltiplos frisos intervalados de degraus, convergem nela as sombras: afrescos congruentes com os debruns dos telhados; com a elevação e arestas das casas; em obediência ao sol.   Ao fundo, o quadro é azul.   A esta hora, a escada é deserta: é tudo tão calmo; somente o reencontro com a irrealidade.   Desço mais um degrau. Uma sombra cai-me na mão: ouço-a, tão fina sem me melindrar a pele. E esta música que vem ter comigo?! Insinua-se percutida em xilofone; apoiado em pedregulhos roídos pelas mais bravas leves ondulações.   Ouço aquela música até que em mim fique. Não só a percussão, mas também, como visão prodigiosa, o afago das folhas trifoliadas pertencentes aos caules dos codessos que fazem ressaltar o amarelo s

Recriações do real - 2.

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Às dezassete horas. daquele dia. atravessei a rua. pela passadeira. a folha ainda estava lá. era cor de ouro. o céu era azul-pré-nocturno. o vestido era inverno. e. às tantas. sou agarrada. pelo que vejo. a folha ondula. presa ao ramo onde nasceu. Extraio. daquela ondulação. a aragem. com que a brisa-folha soa. música?. de seguida. para minha maior surpresa. a folha. cor de ouro. ora sobe. ora desce. ioiô. brinquedo vegetal. e. grava o seu equilíbrio. no espaço. a tinta dourada. deixando-nos como doce memória. seu grafito. em muro aéreo. contra o fundo de um céu. que se prepara para anoitecer. A queda, simplesmente. Eugénia

O Véu

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  Daqui, vejo, a floresta nevada. Será esta a Floresta da Neve onde Alícia - a doce e recolhida donzela - derramou seu véu de noivado sobre tapetes feitos de silêncio e líquen? Deve ser... [...] Mas                    se, por fugaz encanto, pousasse a primavera         os dedos neste ramo brotaria certamente uma ave no corpo inclinado    de mulher               – esculpido e talhado               no tronco denso da árvore               pela mão dura do vento –   E a árvore-mulher     mulher-árvore               na névoa suspensa romperia as raízes e voaria   à solta               com as asas ideais…   Eugénia Foto: Markus Zuber. in «Sinfonia 2008», Eugénia Soares Lopes, texto | Markus Zuber, fotografia - edição fine art

Circundando Circundando

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Mesmo caindo a folha contra o vento e o azul esfriando o céu, o ninho segura-se nos braços desnudados do plátano. E quando, de novo, os braços se vestirem de verde folha, talvez possamos ver o voo picado de um melro macho circundando - circundando - o ninho; protegendo o ninho. E talvez - quem sabe? - o melro venha a pousar trechos do seu canto num daqueles braços de plátano, junto ao ninho, encantando o dia de quem passa. Eugénia  

Reconstruções do real - 1.

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  Era uma vez uma vereda. os alicerces dessa vereda eram inclinados sobre a terra. as bordas enfeitadas com estrelas. sempre luzidias. algumas dessas estrelas. numeráveis. a desmoronarem-se. cadentes. A lua gostava de correr. e. num dado dia. por volta de finais de dezembro. entrou cedo no terminal nascente. dessa vereda. pois. os ponteiros do relógio. de pulso. tinham-se atrasado. Ao dar entrada. no alto. lá bem no alto. de um lugar. um lugar dominado por vestígios rurais. próximo do poente. não resistiu. inclinou o rosto sobre os ombros. em posição contemplativa. e deste modo se deixou ficar. durante o tempo que o desejou. a ver desfilar figuras. bem definidas. da natureza. árvores. campos arados. e flores de inverno. E. logo. paulatinamente. pôde assistir a nuvens brancas. a desfazem-se. ponto por ponto. dando vez ao crepúsculo. que. seguro de si. se expandia sobre poalha azul. Alguém olhou o relógio da capela. E exclamou: - Dezasseis horas?! Eugénia

Retoma imagética do sonho

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Azevinho Bagas vermelhas pairam entre folha persistente - brilho lendário de inverno; montesinho; é o pulsar travesso da infância; uma retoma imag ética do sonho. Eugénia

Ondulando

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Mãos celestiais tecem rendilhas de mar. . O sol esvai-se  - fico  ainda   até a noite ser flor. Eugénia (haigai, haiku)   

A porta da casa

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  do lado de lá da porta da nossa casa. o que fica é o silêncio. um ressoar de silêncio. agora perceptível. nas esquinas. com veios de passagem. um círculo em arco metálico se acende. verde. mas que importa a cor. se. são nulos os passos do lado de cá da porta da nossa casa. o que fica é a mão dada. à distância. por entre muros. a energia das marés. as ausências. a poesia retirada das estantes do lado de cá da porta da nossa casa. o nosso ombro se converte em asa. que atravessa a porta. que ampara o dia. que sossega a sombra. que renova a terra. tornando-a benigna do lado de lá da porta da nossa casa. o que fica é o gesto. a mão. a estrela da tarde. a estrela da noite. rosto de Vénus. a reinvenção do amanhã do lado de lá da porta da nossa casa. o perfume das gardénias. a sedução dos sóis. pérolas. compondo o colar da rola Eugénia

Na dureza do muro

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Ginkgo biloba Essa folha de uma árvore de Leste - herdeira da dor; do precipício atómico - talhada em leque desencadeia na terra um movimento nulo palpitando ouro - ecoando o poema de Goethe - brilha com o sol detido assente na dureza do muro. Eugénia  

Ardor Rosa

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  Luz discreta    quase débil  – Por entre meandros do rododendro, O ardor rosa dos invernos. Eugénia Foto: Markus Zuber, (in «Porto sem fim | timeless», Markus Zuber,  fotografia  | Eugénia Soares Lopes,  texto )

Cortinado

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na janela. uma cortina. fio algodão com valor envelhecido. por detrás o declive. àquela hora árvores sem sombra. as folhas são verdes verão. o fundo é leito. arenoso. onde as águas de rio passam. como que adormecidas. de onde emanam mantos húmidos que crescem como flor. e se desenham. sem que se notem porque evanescentes. linhas húmidas onduladas no ar. as suas raízes mergulhadas na água. rosas. o dia alonga-se. afiguram-se árvores com folhas noctívagas. e o calor anoitece. e uma cor. e outra cor e outra e outra. como a cor límpida de qualquer berlinde. solto. rolando na dormência das águas.  talvez sejam rastos de estrelas cadentes. que aí ficam rolando e rolando e rolando sempre. pela noite fora. o sol regressa. pela aurora. rosas. iluminam-se. Eugénia  

Pequenas notas - 3.

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  Cada folha que persiste recorda - em seus veios caducos - o sabor da seiva, elaborada na primavera; recita de cor o tom da luz, de cada um dos seus dias. Eugénia

Pequenas notas - 2.

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  A vertigem outonal - da queda das folhas - segura-se como canto brando nos ramos. O azul pousa nas raízes do céu. Eugénia 

Pequenas notas - 1.

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O fim de tarde cheio de cintilações e sem pressa recorta com tesoura fina e mão de água a margem outonal das folhas. Eugénia

Luz azul

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  Sinto uma espécie de dever inadiável, com frequência quase diária, de olhar. De olhar - sem sobressaltos - a luz. Azul. Uma luz quase noctívaga, efémera, a espalhar-se pela vastidão celeste. Única e diversa. Capaz de nos dar o maior espectáculo de cor - capaz de desenhar grafismos cromáticos na nossa emoção, mais funda, tornando-nos espectadores de nós mesmos. Vem. E pisa a terra. E a terra breu recolhe nas trevas a cor das pétalas. Vem. E pisa as águas. E as águas exaltam a espuma das ondas. Vem e adoça o tronco das árvores. E as folhas arbóreas fervilham luz até adormecerem. Vem. Como instante. Mas vem antes da noite. Eugénia

Dia de Outono

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A ave ascende sem pressa à crista da onda ou vagueia nos umbrais do sol. Eugénia  (haigai - haiku )  

Como dizer-te?

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Como dizer-te do silêncio? Se temos as nuvens, como túnica em branco desfeito, curvadas sobre os telhados. E se as olharmos com atenção ouviremos o rumor da chama. Mas o silêncio? Como dizer-te do silêncio? Se temos a claridade; uma claridade inquieta a dispersar a última luz crepuscular. E o fluxo de luz, que aquela claridade transporta, banha generosamente o Atlântico acordando a cintilação de cada peixe como se o horizonte no mar fosse lugar de prodígios - sustendo a luz diurna a findar.        Da chama que inflama a nuvem        deduz o canto do pôr-dos-sol        sigo o trilho da ave. Como dizer-te? Eugénia (texto | foto) texto: in «Luz, reminiscências do olhar | Light, reminiscences of looking» - Eugénia Soares Lopes, texto | Markus Zuber, fotografia.

Sem pressa

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Ouvia-se, quase inaudível como quem somente suspeita, o roçagar do céu na ramagem do plátano. Um roçagar que descia claro e se difundia como rio lento. A luz era seiva já da queda das folhas: refundava a alquimia das cores outonais. Numa nudez progressiva, a textura enegrecida dos ramos firmava-se nítida; e a claridade adoçava o corpo dos pombos sonolentos pousados nos seus ramos, até que um roçagar de um pombo se sumia levado pelas suas asas, de pousio em pousio - dominando o leme até se encostar ao céu. Não. Não tenho pressa. Para quê ter pressa se posso sonhar os voos? Eugénia  

Buganvília

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Quis apanhar o sol; o final da tarde - solto. Na rua alumiava o branco coloria a buganvília remexia os meus cabelos. Entre eles apanhei um fiozinho de sol - guardei-o entre os meus dedos. Eugénia  

Douro Rio

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  É o azul-noite          o rio denso                                 a rocha escura É a luz lunar            abrindo                                 como asa de anjo    florida                                 fecundada pela água É o céu azul            a cor das coisas                                 o rio denso                                 a rocha escura É a luz do sol          mensageira de alvoradas atravessou               a estrada de Santiago                                 e veio                      enamorada                                 sentar-se na nudez líquida do rio e dos beijos             húmidos                                 mil sóis nasciam O sol-posto             o rio denso                                 a rocha escura Era  o crepúsculo    escorregando pelos telhados                                 e a imagem dele flutuando no rio.   Eugénia (in «Porto sem fim | timeless», Markus Zuber,  fotografia  | Eugénia Soares Lopes,  texto )

Entrelaçados

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  Caminhando Vou a estrela cadente na encruzilhada dos astros   o navio declinando sobre a vertente do mar   Vou Caminhando   as mãos dadas os dedos entrelaçados os teus nos meus   Caminhando Vou   os dedos entrelaçados as mãos dadas   o rubro de uma flor   entre laços entrelaço entrelaçados   a pétala trémula resistente de um verso branco   contra o peso rugoso da intempérie   Vou   os sonhos voltejando voos   a linha circular do relógio o andamento do tempo   Vou Caminhando   um pedaço de sol circundando fértil a seiva   os dedos entrelaçados   entrelaçados   a corda dedilhada a voz fecunda do canto   desvanecendo luas sem prata fertilizando caminhos ardentes   danço!   Vou caminhando caminhando   Vou.   Eugénia