Marcas eternas


Marcas eternas

Reabro uma memória da infância
e encontro o lírio branco
na vereda do quintal.

É tão fácil recordar
um lírio branco;
o voo rasante do pólen
riscando a terra,
tocada pela seiva.

A vida:
em certos dias, toma a voz de um lírio branco
inebriando-me os sentidos
com devoção.

Os quintais. Falar dos quintais da cidade é como quem narra um conto do maravilhoso: as emoções afloram... A única diferença é que os quintais invisíveis da rua são reais; os contos maravilhosos são fruto da imaginação: localizam-se no imaginário colectivo. Mas os quintais prevalecem também nas representações sociais da cidade pelas vivências que ocasionaram ou ocasionam...

Agrada-me falar dos quintais - desse verde escondido - como quem escreve uma carta a um amigo. Porque as cartas são uma forma de diálogo sustentado pelo silêncio. E, assim, amigo:

A história que te vou contar começa com uma casa. Uma casa; a fachada revestida a azulejo. A face da rua sugeria um só piso. Mas a vista das traseiras revelava que essa casa era composta por três andares e uma cave que se alongava num quintal. Os andares eram unidos por uma escadaria de madeira em caracol por onde descia vagarosa uma luz coada e diurna vinda de uma clarabóia. Em cada andar, uma varanda. Em cada varanda, uma panorâmica sobre quintais cuja amplitude dependia da altura da varanda e cujo colorido flutuava de acordo com o ritmo das estações. As casas, dispostas lado a lado, ao longo de um mesmo passeio dessa rua, várias delas com a mesma configuração exterior. Os quintais, todos eles, com as mesmas dimensões.

Às vezes, caía do céu um melro e prendia-se a um figo desprevenido, no verde folheado de uma figueira; talvez lhe soubesse a mel. Outras vezes, era um gato adormecido sobre um muro de granito, acolhido pela sombra serena ou, até, movediça de um limoeiro, conforme a disponibilidade do vento. Nos canteiros, junto aos muros, não faltavam os jarros ante o brilho de mica do granito. E havia as trepadeiras: as flores coloridas, a seu tempo; as folhas verdes a treparem sobre o esmeralda - nobre mineral - de água que sobrenadava no tanque de pedra.

E havia os dias e as noites. O céu a abrir as manhãs azuladamente; às vezes manchado de rosas; outras vezes, debruado de brancuras ou de cinzas de nuvem. Às vezes, o brilho das estrelas estendido no céu nocturno a rebrilhar; outras vezes, o negrume, sem cânticos dos astros. E sempre os vasos de begónias, lá estavam nas varandas tratados por mãos, a elas fiéis, femininas.

E, do lado de lá, um pouco distante, da fronteira dos quintais, uma ilha - um desses lugares de moradias com carácter operário onde tão facilmente se estreitam a convivência e os laços de vizinhança: a cooperação.

A casa era de Cassiano Barbosa. Cassiano Barbosa manteve uma relação profissional duradoura com Arménio Losa, de quem múltiplas vezes se ouve dizer: «Andou sempre à frente do seu tempo». Com ele discutia arte moderna; os ideais de Le Corbusier. Sempre atentos à evolução da cidade e às evoluções internacionais do Movimento Moderno, são expressão deste mesmo movimento.
[...]

Eugénia

em «Porto, pedra e vozes - stone and voices», Markus Zuber, Eugénia Soares Lopes.

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