Improvisos


Improvisos

Foi num daqueles momentos de súbita beleza que me permiti acolher, nas mãos unidas em concha – os dedos de uma 
aos da outra entrelaçados –, a atmosfera poética que persistia fugaz do lado de lá da vidraça da janela. Havia naquela atmosfera – suspensa, difusa – uma névoa tocante, quase tonalidade musical, baixando de uma franja do céu até cair, melódica, sobre a nudez dos ramos de um plátano; no plátano mais elevado do terreiro.
 
Foi na ausência dos melros.
 
E eu, naquele momento único, olhava aqueles ramos por detrás da vidraça; a serem molhados. Eram finos esses ramos enquadrados no cume do plátano, dirigidos ao céu. Aqui e acolá, um aquénio a querer soltar-se, pedúnculo frágil e movediço; tal dança tocada por vento leve, muito leve – tão leve como sopro imponderável da separação das águas da névoa.
 
Oscilavam somente. E:
Cativada por aquela visão efémera, a finalizar-se, senti aquele impulso maduro que nos condiciona e nos leva de modo inelutável a querer prolongar no tempo o Belo, vivenciado, preenchendo o nosso espaço – não só aquele espaço físico que sobra da existência das nossas cadeiras, secretárias, lápis, quadros de arte expostos, retratos e candeeiros, mas principalmente aquele espaço, nosso, reservado à nossa interioridade. Preenchendo-o com qualquer coisa a mais: qualquer coisa que acrescente emoção às nossas sensações; qualquer coisa sublime; talvez alguns matizes sonoros poéticos que nos completam os sentidos.
 
Destrancei os dedos. Soltei as mãos. Separei-me da vidraça da janela. Aproximei-me do velho gira-discos. Levantei a tampa. Retirei o vinil da capa que o protegia. Encaixei-o no pino central do aparelho e pousei-o sobre o prato circular. Coloquei a agulha, na borda externa do disco vinil.
 
Improvisos para piano.
Schubert.
 
Eugénia

(Apresentado em «Arte no Tempo»: evento «Que música ouvimos?» - Museu de Santa Joana, Aveiro; 2020.)


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