Os cravos
Os cravos
Houve um tempo em
que os meus sentidos se abriam com os olhos postos nas árvores, de copa redonda,
abertas ao sol.
Quando o sol
dourava, as folhas dessas copas tornavam-se lustrosas e à sua volta as asas dos
pássaros luziam demoradas no céu. E certamente por miraculosa coincidência, os
pombos arrulhavam aos pares, tocando seus bicos.
Entre março e
abril, o sol expandia-se e:
As mimosas inclinavam-se
ao peso da sua própria floração. E os rios circulavam, a seus pés, povoados de
pólen.
As frésias dos
atalhos, compondo indizíveis populações de múltiplas cores, permitiam ao ar a
sua fragrância misturada com o cheiro puro da terra.
E tudo era cor. E tudo era doce.
E tudo flor.
Houve um tempo em
que os sonhos partiam em barcas voantes, mirando as copas das árvores, escutando
as canções das crianças, espreitando o voo dos pássaros; cantando ao sol, as
flores.
Houve um tempo em
que, sob o céu – no qual o sol pousava para que a seiva se elaborasse na copa
das árvores e o alimento amadurecesse –, uma sombra pesada, que de si mesma se
julgava imbatível, prosperava persistente, com a força vital da erva daninha.
Era o tempo das
amarras. Era o tempo dos espias.
Das celas. Das
torturas. Dos temores.
Era o tempo das
muralhas. Das ameias. Dos degredos.
Era o tempo das
sementeiras. Dos combates. Das ousadias.
Era o tempo dos
segredos. Dos universos escondidos.
Das mãos dadas. Das
palavras ciciadas. Das canções com sabor a flor.
Houve um tempo em
que os meus olhos se abriram sobre a cidade. Povoada de luz. Carregada de
cravos.
Eram rubros.
Brotavam:
De cada pedra. De
cada fresta. De cada jarra.
De cada ânsia. De
cada peito. De cada mão.
Os cravos.
Erguidos pelos
braços elevados, ondeavam ao ritmo dos harmónicos dos cantos.
Era primavera. Era
abril.
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